Cenário:
1. Veeeeeeeeeento, muito vento, num dia de calor.
2. Eu a subir a minha rua, de vestido rodado (vermelho), a falar ao telefone com um serviço de apoio a clientes que me trata por "tu".
3. Preciso de ver a informação que está numa das quatro folhas que trago na mão, dobradas em três.
Apoio ao cliente (AC) – ...blá blá blá whiskas saquetas blá blá blá... Podes então dizer-me o número de conta?
Eu – Sim, só um momento... Tenho de ver aqui nestas folhas…
Passam-se quatro segundos... Bolas, esse número está na terceira folha, penso. Esmago o ombro contra a orelha para segurar o mobile e poder trazer as mãos livres para menear as folhas, mas o meu mobile é fininho e vai escorregando devagarinho.
Eu – Ah, está aqui. É o 307... (mobile a escorregar, acto reflexo de tentar apanhá-lo, folhas a voar pela minha rua...) Porra! Ehhh, desculpe. Dê-me só mais um momento. É que agora voaram-me as folhas e...
(Como se ele, do outro lado, a tomar chá, a comer chamuças e a ver um filme bollywoodano, com os pés em cima da secretária, numa qualquer cidade da Índia, quisesse saber que raio se passa deste lado...!)
[SNAPSHOT]
Este é o momento que vale a pena reter. De repente o cenário é este:
Eu, a subir a rua, com a mão esquerda definitivamente colada ao mobile senão ele cai. Três das quatro folhas de papel tridobradas a voar. (Já referi que estava muuuuuito vento?) Vestido rodado ganha vida. Pareço daqueles bonecos insuflados que abanam os braços, à beira da estrada... só que os "braços" são o meu vestido. Eu a correr, infrutiferamente, em espiral atrás das ditas folhas. O vestido a esvoaçar-me, em todas as direcções, o suficiente para mostrar várias vezes o biquíni. Mão direita, insegura, tenta agarrar o vestido e prendê-lo entre as pernas. Prendo-o. Mas com ele preso não posso correr atrás das folhas. Tento, mas pareço um pinguim aflito pra ir fazer xixi, a fazer um ritual de atabalhoado de acasalamento que entretanto o faz perder o sonar!
Paro por meio segundo. Penso seja feita a Vossa vontade e fico quieta, deixando que o caos do universo chegue a um consenso e decida quando é que basta de me ver fazer figuras tristes. No meio disto tudo, o rapaz do outro lado da linha...
AC – Está tudo bem? Olha, se quiseres podes dizer-me o número de contribuinte.
Eu – (vai pró caralho! Eu tenho à vista um biquíni brasileiro que deixa muito pouco à imaginação e estou numa rua [NA MINHA RUA] entre um BES envidraçado apinhado de gente e um ciclo preparatório no intervalo grande. Que parte de "rabo-ao-léu" é que precisas que te explique?!?! Não podias ter dito isso antes?!?!) [voz] Ah... ok, número de contribuinte. Pois, esse sei de cor: é o 2********...
AC – Obrigada. Podes só aguardar enquanto verifico os dados?
Eu – POSSO! Claro que posso. (Obrigada, Deus, por trazeres ordem ao caos!)
Nisto, olho para a esquerda e vem de lá o carteiro a subir a rua. Obrigada outra vez, Deus, por mandares o carteiro.
Faço o sorriso de donzela em apuros, levo a mão direita ao vestido num acto de pudor que não tenho mas que achei adequado à situação... e também precisava que o carteiro se concentrasse nas minhas folhas, não nas minhas pernas.
O rapaz, provavelmente bom aluno em educação física (ao contrário desta nulidade que vos escreve) e concerteza [esta palavra não existe, mas devia] uma referência nos Testes de Cooper realizados pelo Prof., correu como se disso dependesse a sua vida e apanhou-me as folhas todas, não sem antes deixar cair, ao dobrar-se, uma resma de cartas que transbordavam da mala que trazia à tiracolo.
Depois de metidas as cartas novamente no saco (ou seja, "re-metidas" no saco), vira-se triunfante para mim, enche o peito, expira profundamente e vem na minha direcção trazendo de bónus um sorriso branquinho e alinhadinho de quem não tem medo do dentista.
Eu – Ah, muito obrigada.
Recebo as folhas de papel e enfio-as logo debaixo do braço esquerdo. Aproveito e desligo a chamada, uma vez que o outro ainda está a "verificar os dados". Penso se calhar já podia ter desligado antes deste circo todo acontecer...
Carteiro – Está mesmo muito vento hoje, não é...?
Eu – É verdade... (NO SHIT!!!!! Devias trabalhar no Instituto de Meteorologia e Geofísica, oh Einstein!)
Depois caio em mim e mudo o semblante para uma cara agradecida.
Eu – Obrigada, sim? Estava um bocado aflita. Se não fosse o senhor... Bem... Obrigadíssima e tenha um resto de bom dia. (Se tu fingires que não viste eu também posso fingir.)
Estico a mão direita, dou-lhe um aperto de mão grato e envergonhado, e retribuo o sorriso agradável que ainda traz posto.
Viro costas e continuo a subir a rua. Sinto-me mínima, sinto-me um micróbio e ainda assim (ou talvez por isso) endireito as costas e lá vou eu: um micróbio de vestido vermelho que pensa ainda bem que trago estes óculos que tapam 70% da cara...