3 de março de 2010

a la folie

Parece estranho que uma pessoa tenha consciência de quando a sua ingenuidade (já fraquejante) leva a golpada final. A estocada seria apenas mais uma, não tivesse eu consentido. Esta era uma morte anunciada, afinal a inocência era quase trintona – sinónimo de “anciã” na idade-de-sentimentos-infantis.
Naquele dia, naquela tarde, eu vinha inundada de ti. Daquilo a que passam a valer os parcos momentos juntos, em que te (ab)sorvo a um metro de distância. E que atordoam, de tão intensos.
“Mais um momento, só mais um momento”, é o que peço – ou rezo – intimamente. Que não te vás, que não tenhas de ir-te, que não exerças a faculdade de te alheares de mim e, se possível, que te desmaiem as pernas – como a mim quando me passas o braço pela cintura.
Não ouves a prece que matuto entre os ouvidos.
Abraças-me no adeus, encostas a cara à minha e soltas-me dando por findo o tempo que me coubera, selando num roçar de bochecha o convívio diário.

Caio transida, tolhida, paralisada. Caio e chio na queda. Chio no Chiado e só eu ouço.

Olhaste-me e percebeste alguma coisa. Sem saber exactamente o quê, decifraste-me tristeza no olhar, creio. Fiquei triste por mim, por ter sido outra vez – pela última vez – miúda, catraia, por ainda pensar que os príncipes existiam e que – lucky me – um estava mesmo à minha frente. O que viste fui eu a despedir-me de mim, não de ti. Quando me indemnizaste a boca com um beijo beijei-te de volta sem noção, quase sem intenção.
Só me apetecia ajoelhar-me e tentar ressuscitar a pequena-eu que, ignorantemente feliz, fenecia. Olhei para o chão, saiu-me um sorriso nervoso e um “vai andando” que era, de facto, um “vai-te embora e deixa-me viver o momento em que permito que se extinga a minha candura”.
Viraste-te e seguiste o teu caminho. Pus em marcha o autómato que foi o meu corpo naquele instante. Olhei para o Fernando Pessoa que levou a mão ao chapéu num cumprimento de outros tempos, e disse “não te preocupes que eu olho por ela”.
E não me preocupei. Deixei a minha preciosa criancice a três metros do escritor e subi a rua ainda a tremer – em parte devido à vodka, em parte devido a sentir-me mais vazia, mais oca, a precisar de sustento no esqueleto.
Subi a rua a passo de gastrópode, deixando rasto. Dava passos pequenos e lentos mas firmes, subindo subindo subindo. Quando cheguei onde tinha de chegar, cheguei triste. Genuinamente triste.
Mas era exactamente ali, nesta salada de tempo, espaço e espírito que eu tinha de estar. Percebi que não poderia dar-te a minha ingenuidade porque simplesmente tu já não sabias reconhecê-la. Deixaste a tua morrer algures e com ela perdeste o receptor, o decifrador comum. É normal que já não tenhas essa capacidade, exigi demasiado de ti.
Não sei se gosto que me sejas mais indiferente agora. Não sei se quero a terapia breve que não pedi ao Chiado. Nem sei se viverei melhor agora sem a minha inocência – só sei que vou sentir a sua falta.


(Se bem a conheço está a entediar o pobre Sr. Pessoa e a contar-lhe, entusiasmada e arrebatada, tudo sobre ti.
Uma, outra e outra vez.)

4 comentários:

Bee disse...

Puxa!!! Adorei!! Texto poético e sincero que traduz algo que eu nunca consegui colocar em palavras.

Lindo!

de Marte disse...

Teresa,
claro! ;)

de Marte disse...

Bianca,
Vindo de ti é um graaaaande elogio!!! Obrigada.
(Mas tu é que és a poetisa...) :)

***

AUFDERMAUR disse...

Sublime! Não é qualquer pessoa que consegue escrever um texto sobre esse tema de uma forma tão poética e cheia de graciosidade em cada palavra. Repito: sublime. Adorei cada palavra.