Hoje encostei um cigarro aos lábios só para te saborear durante uns minutos.
Mais de dez anos sem fumar fazem com que pareça estranho o gesto outrora rotineiro. O calor e o acre a passarem por mim, a deixarem colado a todos os tecidos o cheiro estrangeiro. Não me contorci, não foi violento, foi fisicamente familiar.
Mais ainda, fechei os olhos para deixar que as papilas espevitadas e sãs te descobrissem no sabor e te namorassem, te cortejassem.
Lambi-te e sorvi-te e cheirei-te.
Comi-te e mordi-te e engoli-te.
Deixei-te passear por dentro de mim; permiti que alcançasses as minhas memórias e nelas te visses. Olhaste para ti e não te reconheceste. Estavas a cativar-me, de cigarro no canto da boca. Tens o mate característico de uma película 8mm gasta por excesso de uso. O granulado impedia-te de perceberes que eras tu. Reconheceste-me por entre as imperfeições – estás habituado a elas. Sorriste para mim. Ao fazê-lo, a imagem que não descodificavas sorriu também. Percebeste que eras tu, ali sentado. O tipo de ar descontraído, de cabelo propositadamente desalinhado. O homem níveo protegido pela camisa de tons claros. Não sei se foste tu que a vestiste de manhã ou se foi a minha memória, ainda há pouco. É indiferente: és tu, o autor dos meus sorrisos… e do meu bater de unhas na mesa: mindinho, anelar, médio, indicador. A impaciência. Mindinho, anelar, médio, indicador. Onde está o meu beijo? És tu, o interlocutor dos meus silêncios. Dos nossos silêncios. Em que desvio o olhar, penso o que é que estou aqui a fazer? e recebo a resposta quando os olhos retomam a rota dos teus. A minha mão tem uma polaridade inversa à tua e é quase impossível de deter, nos pequenos gestos. Toco-te e agarro-te como se não estivesse a deleitar-me em cada centímetro da tua pele. É tentador chegar à tua mão, que tem vida, que retribui os meus gestos. Infelizmente esta está ocupada com o cigarro.
O fumo. (Acordo!) O fumo…
O fumo que estava em mim já se perdeu na atmosfera. O meu sonho esfumou-se também. Inspiro-te outra vez. Mais uma vez te ingiro. Quero ter-te em mim mais esta vez. Forço-te com sofreguidão, inalo o fumo que és tu, sem esperar anuência. Deixo que saias de mim devagar, como se com medo de um fim. Quando estás assim, em mim, e me aqueces a boca tenho medo de ti. Tenho medo de não parar de te querer.
Não te apercebes de quão corrompida estou. Quão viciada. Não sei se quero que tomes consciência da saciedade que me trazes. Não conheces esse teu poder de me agarrar, entrar em mim e fazer-me perder as horas.
Amarga, apago o cigarro e esqueço-te por hoje.